segunda-feira, 27 de setembro de 2010

plim

estou sendo devagarinho encoberta por uma areinha fina fina discreta e radiante pózin purpurina de instante em instante.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

diálogo

O menino olhou pra cima e decidiu subir a montanha. É bem alta bem alta mesmo e mesmo assim ele não titubeou, o menino precisa subir a montanha e nem eu nem você sabemos por que.
Ele é bem pequenininho, algo como um metro e quarenta centímetros de um corpinho amarrotado e quente. Não usa roupa nenhuma e também não percebe que isso é estranho, eu estou um pouco preocupada com a sua nudez agora que ele decidiu subir a montanha, porque a montanha é bem alta bem alta mesmo e alguma hora vai escurecer e alguma hora ele vai tropeçar e alguma hora uns animais ímpios vão aparecer e sua nudez vai deixá-lo ainda mais desprotegido do que seu um metro e quarenta centímetros amarrotados e quentes.
Ele é um menino preto preto, tão preto eu tinha medo de perdê-lo de vista logo logo porque está anoitecendo e às vezes ele fecha os olhos subindo a montanha e aí eu já não o vejo. Porque o que eu vejo é o brilho branco dos seus olhinhos pretos mais pretos do que o seu corpo preto.
Eu preciso esperar ele subir a montanha toda, eu não sei se ele me mandará um sinal quando chegar lá em cima ou se ele sabe que eu estou aqui e continuarei aqui até ele me mandar um sinal. E essa é a minha história.

A menina olhou pra cima e decidiu ficar ali parada. Eu e você entendemos que ela fique ali parada porque a montanha é bem alta bem alta mesmo.
A menina também é alta e tem um metro e oitenta e cinco centímetros esticados e mornos. Ela usa muito muito pano pano até os pés, mas vejo daqui seus dedos dos pés sujos e descobertos. Estou um pouco preocupado com seus dedos dos pés porque uma hora vai anoitecer e uma hora uns bichos maus vão aparecer e seus dedos descobertos vão deixá-la mais desprotegida do que já é.
Ela é uma menina caramelo, nunca tinha visto alguém tão caramelo assim. Era tão caramelo que estava anoitecendo e o chão era caramelo também, então estou com medo de perdê-la de vista no chão caramelo.
Eu preciso subir a montanha toda para ver se ela vai continuar aí, mas não sei se ela sabe que eu vou fazer um sinal quando chegar lá em cima ou que eu estou subindo a montanha para mandar um sinal. Mas é essa a minha história.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Uma e Outra

Cada vez que cresciam um pouco davam um passo a mais em direções contrárias. Não que não se parecessem mais, muito pelo contrário, pensando agora é até bem triste o modo como elas não conseguiam lidar com o fato de se parecerem cada vez mais.
Não sei o que aconteceu, mas um dia as coisas deixaram de ser como eram para sempre e seria muito difícil restabelecer alguma coisa nova que se adaptasse ao que viviam com tanta força quanto aquilo que viviam antes dessa coisa acontecer. Eu sabia sei e morrerei sabendo que alguém como ela a gente só encontra uma vez na vida quando se é alguém como eu, e mesmo assim não sei como alguém como ela muda uma relação muito forte de um determinado jeito para um outro possível e real. Ela não sabe como fazer isso e eu também não sei.
A verdade é que embora não fossem crianças, haviam sido durante muito tempo e isso as deixava muito juntas e felizes e agora eram menos crianças e não conseguiam mais ficar juntas e felizes. Elas guardavam segredos de maneira incrível e uma era um segredo para a outra e aquilo ficava guardado de um jeito tão seguro que pensando agora eu não sei onde a guardei. Eu não sei como é pra ela, mas eu esqueci que precisava procurá-la para sempre porque senão ia perder o segredo dela em algum lugar dentro de mim.
Dois movimentos que elas fizeram foram muito significativos no sentido de tentar entender porque iam cada vez mais para longe uma da outra. Uma delas ia cada vez mais em direção ao útero, e a outra ia cada vez para longe do útero. A que ia cada vez mais em direção ao útero achava que a outra estava longe demais do útero e que isto não precisava ser assim, e a que ia cada vez mais para longe do útero achava que a outra estava perto demais do útero e que isso não podia ser assim. Mas nenhuma das duas disse nada disso e talvez isso seja importante demais para não ser dito.
Uma delas sempre procurava a outra e eu não a procurava como ela queria e como precisava, mas ela achava que não podia me cobrar isso e que eu era assim mesmo e ela gosta de mim e sabe que eu gosto dela e além disso ela também guarda o meu segredo, eu não sei onde e talvez ela também não se lembre, mas nós duas sabemos que isso é uma verdade. Isso é uma daquelas coisas que me fazem saber que uma pessoa como essa só pode ser encontrada uma vez na vida por uma pessoa como eu. Mas talvez ela tenha começado a se incomodar pelo fato de eu não a procurar o tanto que precisa e tanto quanto me procura, isso pode ter acontecido mesmo, mas ela não disse isso e talvez isso seja importante demais para não ser dito.
A outra coisa é que as duas não mostravam mais uma para a outra uma coisa estranha e profunda que tinham em comum e que não conseguiam mais mostrar para ninguém. Isso não tinha nada a ver com terem sido muito crianças, isso era um segredo de outra natureza e talvez esteja nesse segredo a chave para a nova coisa que elas precisam criar para que continuem juntas. Uma delas estava escrevendo um conto e, pensando agora, não entendo ainda o porquê de não ter mostrado a ela, e a outra que sempre se envergonhou das coisas que escreve está escrevendo coisas muito bonitas e continua não mostrando a ninguém, tenho a impressão de que antes eu lia mais essas coisas, mas dessa vez eu descobri por acaso um lugar dela onde há textos muito bonitos dos quais ela se envergonha e não mostra a ninguém. Eu não sabia se dizia a ela que tinha encontrado essa página e lido, lido não só o que ela escreveu como o segredo dela em mim, que me lembrou que eu devia escrever esse texto agora e não esquecer nunca mais.
A falta da coisa profunda e estranha compartilhada por elas era bem difícil de ser contornada e não era preenchível mesmo. A respeito disso elas só se sentiam sozinhas. E era um pouco doído se acostumar de repente com uma falta assim. Mas elas estavam tentando arduamente.
Elas eram melhores juntas e talvez precisassem de tempo para descobrir como poderiam ser tão boas assim sozinhas. Mas o tempo estava passando e elas estavam descobrindo mesmo e eu acho que daqui a pouco não vão mais precisar ficar sozinhas e vão ter certeza de que são tão boas juntas quanto sozinhas.
O fato é que elas precisam uma da outra e o fato é que não se encontra alguém de quem se precisa muitas vezes na vida. Principalmente quando se trata de uma pessoa como eu. Não sei como ela lida com o fato de precisar de alguém, mas acho que é do mesmo jeito que eu.
Talvez as coisas importantes não precisem mesmo ser ditas, mas isto era importante a ponto de ser escrito e coisas escritas e não ditas são a forma do nosso segredo, e nosso segredo é a nossa forma de amor.

sábado, 20 de março de 2010

o canto

Não há círculo que se complete
e deformado segue
buscando em si
novo compasso

Piscina grande, suja, verde
Um corpo nadando
nada nada nada
vício em lodo, musgo
segmento pantanoso
muco de terras inundadas
alga roça e lambe
o cobre de carícias
sereia entoa nota alva pura
de horror fatal e sem verso
ele se deleita em ternuras
está quase submerso

terça-feira, 16 de março de 2010

Os gêneros fundamentais

Súbito prato insípido
Passo arrítmico de esfinge
Digna, imóvel
Roaz. Ménis de Aquiles expressa
Naquilo que resta
Céu sujo sem épica
Narrando uma acética aventura
Mítica de lendas de urbes
De tempos difusos em sujeitos
Sem lírica
De leitos mui duros cuja lírica
Sem sujeito,
Faz-se no suor do mundo
Nos poros dos aglomerados
Em gigantes axilas de trens lotados
Dramática peça pública,
Tragicômica
Do anonimato.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

práxis

Tudo padecia como de costume. Na cozinha, os talheres tão cuidadosamente lustrados reluziam à meia luz do fim de tarde. A mesa redonda coberta por uma toalha florida levava sobre si uma cesta de palha repleta de pães amanhecidos; estavam frouxos, mas conservavam em sua consistência algo de plácido que ilustrava com precisão toda aquela casa.
Há anos a vida não lhes surrupiava nada, viviam sem excessos, sem grandes alegrias ou tristezas profundas, viviam o suficiente e não podiam reclamar. Sua situação conjugal não era das mais fervorosas, mas como estivesse previsto nas normas do contrato que assinavam 20 anos antes, aceitavam sem mais delongas.
Não era por falta de tempo que não conversavam, os ponteiros giravam entediados perante o silêncio daquelas sutis atividades que os dois realizavam solitários no mesmo recinto. Madalena lia muito, não os romances que comumente entretêm as mulheres maduras, ela gostava de livros teóricos. Sociologia, filosofia, economia política, química e quântica. Não que os entendesse ou buscasse algum tipo de aprofundamento, mas pensava que deste modo estaria apta para lidar com qualquer tipo de situação que viesse a enfrentar. Para ela, livros eram como manuais, possuíam aplicação prática em todas as instâncias, se precisava trocar um fusível, preparar um chá ou comprar um automóvel. Serviam também para que ela entendesse as pessoas. Não falo de uma compreensão analítica, refletida, falo apenas de uma percepção ligeiramente cuidadosa que, de algum modo, a informava sobre qual seria o melhor modo de agir com cada um. Inexplicavelmente funcionava. Nunca soube de ninguém que tenha se sentido mal na presença da Madalena, e não só por ser cordial e singela, mas pelo modo particular como tratava aqueles que iam à sua casa, pelo modo como ouvia o que precisava ser ouvido e dizia o que havia de ser dito. Madalena desenvolvera com seus livros um domínio preciso da palavra e uma retórica impressionante, de quem consegue extrair de si tudo o que sabe sobre qualquer coisa.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Fábula crível

Há um encanto agradável no amor ideal. Não chega a ser motivador ou ilusório, passa longe do obcessivo e creio até que faça certo bem. Sou tão apegada a possibilidade que desvalido excessivamente a procura pelo nada.
É belo, há que ser admitido, é belo amar sem reciprocidade. Eu diria até que se trata do amor em si. O amor ao amor. É uma vontade esquisita de sentir, que parece não depender do outro. Ama-se e pronto, no mesmo instante está sendo amado pelo próprio amor.
Amar o nada é abstratamente muito próximo ao amar-se a si mesmo.

moinho

Com medo dos amanheceres
de amanheceres
Fino trapo incolor que mantém a engrenagem
Das finas tripas (fracas ripas)
Sustento dessa casa velha
Mortes súbitas e despensa
repleta de pão sem fermento
É triste, inútil e válida
essa avidez temerosa e vacilante
pela ampliação e suposto conhecimento
daquilo que amanhece
e se banha de lamentos


Pó de ontem impregnando a mobília nova.